Domingo passado, era uma tarde fresca. Estávamos assentados à sombra de coqueirais na casa de minha Avó com alguns primos, lá na Guabiraba, jogando conversa fora. Coisa que não faço com frequencia. Odeio falar coisas inuteis. Engraçado, pela primeira vez essa expressão “jogar conversa fora” chamou a minha atenção. Joga-se fora aquilo que não é para ser guardado. Não se diz “jogar conversa fora” de conversas de negócios entre executivos. Nas conversas de executivos nada é para ser jogado fora. Cada palavra vale dinheiro. Jogar conversa fora é uma brincadeira parecida com soprar bolhas de sabão. As bolhas de sabão são de curta duração. Mas são tão divertidas... Vão-se umas, sopram-se outras. Nietzsche e Alberto Caeeiro faziam filosofia e poesia contemplando as crianças entretidas nessa brincadeira. Quando jogamos conversa fora voltamos a ser crianças: sopramos bolhas com palavras, bolhas que serão logo esquecidas. Pois é. Lá estávamos nós quando, de repente, comecei a sentir um cheiro que me levou para dias da minha infância. A imagem que aquele cheiro me trouxe era tão doida que eu não disse nada. Achei que iriam rir de mim. Mas veio a lembrança, a época de minha meninice em que eu brincava no Riacho Gavião (antes de se tornar um esgoto a ceu aberto), e disputava espaço dentro d’água com as lavadeiras de roupas que iam todos os dias ao rio. Lembro-me bem que eu era o terror daquelas lavadeiras. Elas viviam reclamando com minha vó dizendo que eu baldiava a água pulando e molhando todo mundo. Uma vez um grupo de lavadeiras se uniram e me deram uns esfrergões com caco de tela dizendo que estavam tirando seroto de minhas costas. Na verdade elas estavam era se vingando de mim. Mas eu contra ataquei, juntei uns primos mais novos que eu e juntos subimos no pé de siriguela e começamos a atacar as lavadeiras com pedras. Eu sempre comandava meus primos mais novos para fazer traquinagem.
Assim são as imagens poéticas: elas têm o poder de ir lá no fundo da alma, onde moram os esquecimentos. E quando um desses esquecimentos acorda, a gente sente um estremeção no corpo. Essa é a missão da poesia: recuperar os pedaços perdidos de nós.
Pois isso está acontecendo comigo agora, estou sendo visitado por uma imagem emissária do meu passado. Ela me aparece e eu me comovo. Se me comovo é porque eu me pareço com ela. É a imagem de um caminho. Haverá alguma razão para esse aparecimento? Acho que sim. Vou completar vinte e poucos anos. Olho para trás, olho para frente... Vejo o meu caminho...
Tenho, na minha sala de estar, algumas telas de arte. Tenho o hábito imperdoável de adorar arte e boa parte do dinheiro que ganhei quando fui servidor do governo investi em arte.Sobre um console que tenho na sala ostento uma tela original de “Chico da Silva” uma tela grande, mas não é a mais cara de minha coleção. Ao lado tem uma tela menor. Uma aquarela pintada pela Rafayella: um caminho no meio da mata. Não se sabe para onde vai porque ele desaparece numa curva. Eu recebi essa tela de presente, a artista querendo me vender outras telas me ofertou essa como cartão de visita. Rafayella é uma das maiores artista plástica que eu conheço. Já tenho muita tela feito por ela. Eu me assento no sofá e fico olhando para aquela paisagem; coisa que não faço com famosas reproduções de Delacroix e Da Vinci. O caminho me faz pensar. Pensar sobre mim mesmo. Penso sobre o caminho que trilhei. Penso sobre o caminho que trilharei, depois da curva...
Sinto o que disse Robert Frost num dos seus poemas: “Duas trilhas bifurcavam num bosque de outono, e eu, viajante solitário, triste por não poder andar por ambos, por longo tempo lá fiquei olhando até onde desapareciam na folhagem. Duas trilhas num bosque bifurcavam e eu – eu fui pela menos pisada, e isso fez toda a diferença”.
Acho que eu fiz o mesmo: preferi sempre a trilha onde poucos andavam. Desde menino eu amei estar sozinho. Gostava de ficar só com os meus pensamentos. Lembro-me do sitio onde fui criado por minha Avó materna. Eu acordava, todos estavam ainda dormindo, vestia-me e, silenciosamente, para não despertar os adultos, caminhava pelo quintal e sentava embaixo de um cajueiro onde Sansão, meu cão e e melhor amigo da infância me fazia companhia. (Ah! que reminiscência dolorosa essa do meu Cão Sansão. Quando ele morreu quase morri junto. Qualquer dia desses vou visitar onde eu o enterrei). Ali, embaixo do cajueiro, ficava a ouvir o gorjear dos pardais, dos bem-te-vis, dos papa-capins, dos bicos de lata, dos sabiás e toda especie de aves da caatinga. Ficava ali, meditando e ouvindo longamente o canto dos pássaros, sozinho.
A trilha menos pisada é a trilha dos hereges, dos bufões, dos poetas, dos profetas. Esses foram sempre meus melhores amigos. Eliot tem um aforismo que diz: “Numa terra de fugitivos quem anda na direção contrária parece estar fugindo.” Não sei se a minha era uma terra de fugitivos. Só sei que desde pequeno eu andava ao contrário. Lembro-me de minha infancia em Maranguape onde quase todo mundo era católico. Eu era protestante. Quando a diretora da escola chegava ao pátio escolar e chamava as crianças para rezar eu tinha de me levantar e dizer: “Eu não vou...” E assim tem sido, através da minha vida. Nunca consegui pertencer a um rebanho fosse qual fosse o seu nome: igreja, clube, partido, escola de pensamento, grupo profissional, grupo político. Fui expulso de duas escolas, de tres igrejas, de dois partidos, de incontaveis associações e de uma faculdade.
Agora, faz poucos meses, fiquei conhecendo o poeta José Régio. Vou transcrever o seu poema “Cântico Negro
Cântico Negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Mas há uma contradição que bem percebo. Não vou pelos caminhos dos outros. Mas ao escrever eu não estarei convidando os que me lêem a seguir o meu caminho? Como se eu lhes dissesse: “Vem por aqui!!” Não, não, não! Não quero transformar minhas caminhadas solitárias em procissões ou comícios. Não quero seguidores. Quero continuar a caminhar sozinho. É bom caminhar sozinho. E o caminhar sozinho não faz caminhos para os outros. O meu caminho é só meu. “Caminhante, não há caminhos”, dizia Antônio Machado. “Os caminhos se fazem ao caminhar...” Cada um tem de fazer o seu próprio caminho. A alma é o caminho. É preciso encontrar esse caminho. Estranho, porque é um caminho que não leva a nada. Mas os cenários à beira do caminho são maravilhosos. Assim, só posso repetir o conselho de D. Juan, o bruxo: “Todos os caminhos conduzem ao mesmo fim. Escolhe, portanto, o caminho do amor”.
O meu caminho, aquele que escolhi trilhar é um caminho de dor. Sinto o alfinetar dos espinhos. Sinto-me tropeçar nos pedregulhos de meu caminho. Não o recomendo a ninguem. Meu triste caminho precisa ser trilhado. Eu preciso abrir veredas para que novos insurgentes passem por ele. Mesmos sendo um caminho de dor, sinto que a utopia o transforma em um caminho de amor.
Adaptação; Clayton Menezes
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